50 dias
Todos nós temos uma carapaça para nos protegermos das misérias de que vamos tomando conhecimento. Com tantas guerras, calamidades, explosões, acidentes e crimes com que somos inoculados pela televisão, rádio e jornais, ficamos insensíveis aos pequenos dramas.
Eu, pelo menos, fico, principalmente à pequena criminalidade que inunda invariavelmente as manchetes dos jornais mais sedentos de sangue. Notícias do neto que matou o avô, violou a avó, bateu na mãe e coisas que tais, parecem-me sempre ecos de um país imaginário, onde a realidade se mistura com os delírios de uma imprensa de rapina que pinta o quotidiano de tinta vermelha, com facalhões e enxadas e gente abrutalhada.
Há uns dias ouvi no rádio uma notícia que abriu uma fenda na minha carapaça. Um homem (um pai!) foi condenado a 10 anos de cadeia. A mulher (a mãe!) foi condenada a 4,5 anos. O crime dele foi violar a filha, o dela foi ter sido cúmplice. A filha tinha 50 dias. 50 dias de vida, não chega a 2 meses. Com dois meses nem sequer se é um bebé, ainda se é um recém-nascido. Com 50 dias de vida a garota deu entrada num Hospital tipo com uma fissura anal, hemorragias internas e o raio. Esteve em coma durante uns tempos. Com 50 dias, não chega a 2 meses.
Esta é a notícia que terá provocado pequenos guinchos de satisfação na redacção do '24 Horas', com aumentos da tiragem. Quem chafurda na lama tem de tirar algum prazer disto. Mas não foi propriamente isto que me afligiu. Estas coisas acontecem e, por mais que se faça, continuarão a acontecer. Só instalando um Big Brother (o do 1984, do Orwell, não o de 2001, do Moniz) é que se poderia impedir esta podridão, mas substituindo-a por uma coisa pior.
O que mais me impressionou nesta história foi saber que a menina, que entretanto recuperou do coma, está a viver com a avó. Não sei se a avó paterna se a materna, mas está ali à mão, para o que der e vier. Quando os pais saírem da prisão, a sua filhota estará ali para as curvas, e isso é necessariamente um pensamento reconfortante para os pais. Para o pai principalmente - se quando a miúda tinha 50 dias de vida o animal lhe fez aquilo, o que lhe fará quando a moça tiver 10 anos?
Alguma alma mais compassiva poderá dizer que tudo irá acabar em bem, que a estadia na penitenciária será breve porque os outros presos não costumam perdoar este tipo de crimes. Afinal, quem já está dentro não tem muito a perder, e acidentes acontecem.
Eu não consigo conceber que a garota continue com a família biológica. O que tem de acontecer para que a família biológica perca totalmente o direito a uma criança? Têm de a matar? Que lei é esta, que salvaguarda o direito de uma família manter a custódia de uma criança mesmo depois de a violar selvaticamente aos 50 dias de vida? 50 dias, porra. Não chega a 2 meses.
Que merda de lei é esta, que permite que estejam cerca de 18.000 crianças institucionalizadas e apenas cerca de 700 sejam adoptáveis? O que é preciso fazer? Furar olhos?
Etiquetas: Adopção, Coisas sérias, Jornalismo, Rantas
5 ComentÁrios:
Parabens pelo blog. Pontos positivos na Prova do olho crítico.
Também ouvi a notícia e fiquei impressionado. A borucracia portuguesa ainda tem muito para avançar...ou retroceder...
A lei não é grande coisa e os juízes também não, porque em caso de dívida benefiam sempre a família biológica (será que neste caso tiveram dúvidas?). Os políticos poderiam mudar a lei, mas também não estão para se mexer. Resumindo: infelizmente vamos continuar a ver notícias destas com regularidade...
Mudando de assunto: cabrão, baldaste-te ao jantar!!!!!
Abraço.
Parabéns, Rantas. Eu já tinha tentado mas ainda não consegui escrever sobre este assunto. Concordo contigo, acho que neste país para uma família perder o direito a uma criança tem que a matar, porque se lhe fizer coisas piores não perde.
Mudando de assunto: cabrão, baldaste-te ao jantar!!!!!
Abraço.
É de facto inacreditável, e difícil de conceber que uma lei possa desproteger desta forma uma criança/recém-nascido...
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