Choque espiritual/temporal
Este senhor insiste em chafurdar na lama. O seu ar crispado, na sessão de ontem da Assembleia da República, dando novas interpretações ao conceito "essencial" e insistindo na asneira grossa, chateia-me.
Freitas do Amaral não tem, obviamente, razão. Espera-se, de um comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que seja, no mínimo... diplomático. Desse ponto de vista, o comunicado de Freitas falhou em toda a linha. Quando estados religiosos fundamentalistas e totalitários procuram impôr a sua visão do mundo e da vida a estados laicos e democráticos, o mais importante (o "essencial"), para estes últimos - e sobretudo, até, para consumo interno - é reafirmarem isso mesmo: "compreendo o seu melindre, mas nós vivemos num estado governado por homens livres, não por Deus, e habitado por indivíduos, não por rebanhos. Ao se recusarem a entender isto, a vossa reacção é inaceitável."
De facto, o que não se compreende, nestas discussões, é que se ponha o acento na "guerra" ou "choque" de civilizações. Na realidade, o que está em causa é, mais uma vez, um choque entre uma visão laica e outra, confessional, do Estado. Também entre nós há grupos que defendem uma maior influência da Igreja na governação dos homens, com um predomínio do espiritual sobre o secular, movendo-se em grupos de interesse organizados (o Opus Dei, por exemplo). Nos Estados Unidos esta influência é ainda mais clara e evidente, pela existência de poderosíssimos lobbies da Igreja e de outros grupos religiosos que procuram - e muitas vezes conseguem - influir na determinação de políticas de Estado.
Na Europa, de qualquer modo, a questão da interferência do espiritual no temporal já está, há muito, relativamente bem resolvida. Por cá, os indivíduos gozam de liberdade de confissão, mas o Estado não. Os estados democráticos europeus não professam nenhuma religião. E os cidadãos europeus, na sua maioria, não querem regredir neste aspecto. Ora, vir agora um balofo Freitas, impante na sua vaidade, dizer que o essencial, para consumo interno, é o "respeitinho", é demais e devia dar demissão.
Apesar de não me ter sido dada a graça da fé, respeito quem a tem. Posso censurar os que não a respeitam, mas não posso, nem quero, proibi-los de desrespeitar. Até a estupidez é livre.
Reservo-me o direito de não respeitar um ministro vaidoso, que se põe de cócoras e papagueia a palavra "licenciosidade" perante uma escalada de ódio e violência que se procura justificar em motivos que são, para mim, totalmente descabidos.
Se, quando o "Expresso" publicou a triste caricatura do Papa, os católicos tivessem corrido a incendiar a redacção do jornal e, do púlpito, os padres condenassem o caricaturista à morte, qual seria a posição de Freitas? "Condenamos a publicação de caricaturas, que são licenciosidade"???
Obviamente, dito assim - sem vir acompanhado de uma crítica à reacção violenta e, acima de tudo, ilegal - isso seria inaceitável entre nós. Então, porque o toleramos aos outros? Será porque Freitas toma os islamitas - todos os islamitas - por estúpidos?
Portanto, mantém-se a questão: no comunicado do MNE, Freitas não disse o essencial. Foi paternalista. Falhou. Envergonhou-nos. Envergonhou os islamitas moderados. Como não reconhece o erro, como é vaidoso demais para fazer mea culpa, devia ser demitido. Já.
Nota: é curioso verificar, na discussão que se vai travando na blogosfera em relação a estes assuntos, que aparentemente seja a "direita" a defender a liberdade e a "esquerda" a apontar os seus limites (ainda que auto-impostos) e o "respeitinho". Anda de facto estranho, o mundo.
2 ComentÁrios:
Subscrevo integralmente as ideias aqui publicadas. Não acrescento nem retiro uma virgula. Mas por uma questão de moderação trocaria a palavra "rebanhos" por outra mais diplomática, por exemplo "crentes", só que isso não retira o essencial.
Bom post.
A luta é a de sempre: Razão contra o Obscurantismo.
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